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História | ||
Araribóia - Ilustríssimo chefe indígena Aliado dos portugueses na conquista do Rio de Janeiro, o índio Araribóia foi enobrecido, ganhou benesses e virou motivo de orgulho para seus descendentes Frente a frente com um representante do rei, o índio cometeu uma descortesia: sentou-se sobre as pernas cruzadas. O ato foi imediatamente repreendido, mas em vez de se penitenciar, o índio decidiu confrontar a autoridade. “Não sem cólera e arrogância”, respondeu o seguinte: “Se tu souberas quão cansadas eu tenho as pernas das guerras em que servi a el-rei, não estranharas dar-lhe agora este pequeno descanso; mas já que me achas pouco cortesão, eu me vou para minha aldeia, onde nós não curamos desses pontos e não retornarei mais à tua corte”. O episódio, verídico ou não, foi relatado por frei Vicente de Salvador e teria ocorrido em 1575, quando o novo governador do Rio de Janeiro, Antonio Salema, foi recebido por personalidades locais. Entre os presentes àquela importante recepção estava o líder indígena temiminó conhecido como Araribóia. A forma altiva e orgulhosa como respondeu à reprimenda do governador é reveladora da posição que este indígena ocupava diante das autoridades portuguesas. Araribóia demonstra consciência sobre seu papel na defesa da terra e como intermediário entre duas culturas diferentes. Por isso portou-se como um grande chefe ofendido com outro que não lhe prestara o devido respeito. E sua ameaça – “não retornarei mais à sua corte” – não se concretizou. Como um dos principais responsáveis pela conquista da Baía de Guanabara, e pela conseqüente fundação do Rio de Janeiro, Araribóia continuou gozando de grande prestígio entre os portugueses. Antes que os portugueses se lançassem na guerra pela ocupação da Guanabara, os índios que ocupavam a região hoje conhecida como Ilha do Governador eram chamados de maracajás (“índios do Gato”, em tupi), liderados por Maracajaguaçu (o “Grande Gato”). Viviam em guerra com os vizinhos tamoios. Sentindo-se ameaçados, solicitaram aos portugueses quatro embarcações, a fim de fugirem para a capitania do Espírito Santo, onde se estabeleceram em 1555. Em terras capixabas, surgem as primeiras menções aos temiminós liderados por Araribóia, grupo que talvez tenha se originado de uma dissidência dos maracajás. O que se sabe é que, ao chegarem ao Espírito Santo, alguns desses índios provenientes do Rio se embrenharam pelo sertão e só seriam aldeados em 1562, com um novo chefe. Este já seria Araribóia. A aliança com os portugueses era estratégica para os grupos indígenas. Para muitos deles, era conveniente ingressar em aldeias estabelecidas pelas autoridades coloniais – isso significava segurança, algo cada vez mais difícil de ser alcançado nos sertões onde guerras, massacres e escravizações eram freqüentes. Tornavam-se índios aldeados e súditos cristãos do rei. Apesar dessa situação subalterna, sujeita ao trabalho compulsório, tinham algumas vantagens, diante do caos da colonização. A legislação estabelecia, por exemplo, a doação de terras e o direito de não serem escravizados. No Espírito Santo, a parceria com os temiminós rendeu a Portugal importantes ações de defesa do território. Os índios destacaram-se na luta contra outras tribos hostis e contra piratas na costa. Tanto que, em 1564, Araribóia e seus liderados juntam-se a Estácio de Sá (1520-1567) em investidas contra os franceses, com o objetivo de fundar a povoação do Rio de Janeiro. “Acompanhava a frota um índio, de nome Arary-boia – que ficou registrado na história do tempo como Martim Afonso Araribóia – e que era amigo dos portugueses desde a época em que a terra de Piratininga fora desbravada. Agora, fizera companhia a Estácio para o ajudar a estabelecer-se na terra dos Tamoios”, relata o padre José de Anchieta (1534-1597). Em 1565, com a expulsão dos franceses, deu-se a fundação da cidade do Rio de Janeiro. E o papel de Araribóia na conquista foi devidamente reconhecido. Três anos depois, foi-lhe dado o direito de escolher uma parte das terras da “banda d’além”, ou seja, do outro lado da Baía, para se estabelecer com sua gente. Recebida na forma de sesmaria, a área passou a abrigar a aldeia de São Lourenço, origem da cidade de Niterói (ou “águas escondidas”, na língua indígena), oficialmente criada em 1573. A morte de Araribóia é um assunto controverso. Dizem que morreu afogado, mas é possível também que tenha sido vítima de uma epidemia. O fato é que seu prestígio sobreviveu, estendendo-se às gerações posteriores. O cargo hereditário de capitão-mor da aldeia de São Lourenço passou a ser ocupado por seus descendentes. Estes sempre faziam questão de mencionar Araribóia em petições encaminhadas ao rei, identificando-se pelo nome de batismo e pela aldeia em que moravam. As autoridades, por sua vez, reconheciam e valorizavam a prestigiosa memória de Araribóia, contribuindo para perpetuá-la. O governador Salvador Correa de Sá e Benevides (1637-1642), ao conferir a Brás de Souza o cargo de capitão-mor da aldeia de São Lourenço, declarou que o nomeava “visto ser descendente dos Souza que sempre exercitaram o dito cargo… e gozará de todas as honras e proeminências que tem e gozaram os mais Capitães seus antecessores”. Os grandes feitos do líder temiminó e de seus seguidores eram trunfos devidamente ressaltados nesses documentos. Durante o século XIX, com o argumento de que os índios já estavam civilizados e deveriam ser assimilados como cidadãos do Império, todas as aldeias foram extintas e suas terras incorporadas ao patrimônio dos municípios. Foi o que aconteceu com a aldeia de São Lourenço em 1866. Ainda assim, a imagem de Araribóia, construída por índios e portugueses em relações de alianças e conflitos, deixou raízes que resistiram aos séculos. Apesar das imensas diferenças que separavam o Araribóia do século XVI e seus descendentes dos séculos seguintes, percebe-se a identificação entre eles pelo sentimento de pertencer à aldeia e liderar um grupo étnico e social específico – os índios aldeados de São Lourenço, com direito à terra coletiva e à vida comunitária. José Cardoso de Souza (1782-1837), considerado o último capitão-mor da aldeia de São Lourenço, ainda em 1820 protestava judicialmente contra particulares que esbulhavam terrenos dos índios. No século seguinte, a nobre memória de Araribóia continuava viva e forte em Niterói. Em 1930, um dos membros da Comissão Glorificadora a Araribóia era José Luiz de Araribóia Cardoso, arquivista e zelador da Igreja de São Lourenço dos Índios, que com orgulho afirmava sua ascendência indígena. Para José Luiz, Araribóia fora mais do que o fundador de Niterói e do Rio de Janeiro. Cabia ao índio o mérito de ter inaugurado “a nacionalidade brasileira”. Mais de quatro décadas depois, na comemoração oficial dos 400 anos de Niterói, em 22 de novembro de 1973, coube ao prefeito partir o bolo, oferecendo em seguida o primeiro pedaço a uma das mulheres presentes. Sem saber, estava homenageando o precursor do município. Foi o que Gilda Rodrigues tratou de informar a Iohana Freitas, Marilia dos Santos e Tarso Vicente, alunos do curso de História Oral da UFF, em entrevista realizada em fevereiro de 2003, pois era descendente do grande Araribóia. Como entender a persistência dessa memória, manifestada por Gilda e José Luiz – e também pelos inúmeros grupos emergentes no Nordeste, por longo tempo confundidos com a massa da população, que aparecem agora reivindicando a identidade indígena e buscando suas origens nas aldeias coloniais? Os índios insistem em continuar existindo e impõem aos historiadores e antropólogos a tarefa de rever conceitos e teorias, reinterpretar documentos e contar uma outra história sobre sua presença e atuação na América portuguesa. Afinal, a História do Brasil nos ensina que os índios perderam suas culturas, identidades étnicas e quaisquer possibilidades de resistir e atuar na colônia, diluídos entre os escravos e a população pobre. A trajetória dos temiminós revela uma realidade bem diferente. Em vez de desaparecerem, reelaboraram culturas, memórias e identidades que lhes permitiram sobreviver por três séculos como índios da aldeia de São Lourenço. Esta identidade, sugerida ou imposta pelos colonizadores, foi por eles apropriada e amplamente utilizada, como demonstram as petições dos líderes que enfatizam a procedência do grupo a partir do estabelecimento da aldeia e da doação de terras. Esses documentos são mais uma evidência de que os índios da Colônia não desapareceram, nem deixaram de ser agentes da História. MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REVISTA DE HISTÓRIA DA BIBLIOTECA NACIONAL (BRASIL)
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