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História | ||
O «homo viator» e a dimensão simbólica da viagem Um dos textos mais populares do fim da Idade Média foi um relato de viagem do cavaleiro inglês Jean de Mandeville ao Oriente. Seus registros falam de cinocéfalos, homens com cabeça de cachorro que latem em vez de falar, homens sem cabeça cujo rosto aparece no peito e pessoas que se alimentam do cheiro das frutas. Antes dele, os curiosos relatos de Marco Polo em O Livro das Maravilhas do Mundo motivaram outros navegadores interessados pelas novidades do Oriente. Segundo Paulo Lopes, mestre em História Medieval, “o universo que envolve os livros de viagens medievais dá bem a ver como o homem medievo é essencialmente um homo viator. Um homem cujo imaginário é ao longo dos séculos cada vez mais preenchido pela dimensão simbólica da viagem e dos espaços longínquos a ela associados. Um homem que anda sempre e vê sempre, seja pelos caminhos físicos do espaço que percorre, seja pelos caminhos iniciáticos que conduzem à salvação da sua alma.”
O universo fabuloso de maravilhas e monstros medievais remonta a mitologia e aos Physiologus (“O Fisiólogo”), um manuscrito grego que apresenta uma série de lendas de origem indiana, egípcia e judaica. Alguns séculos mais tarde, por volta de 5 a.C., o historiador Heródoto teria contribuído com a obra ao mencionar formigas caçadoras de ouro, escorpiões alados, homens com pernas de aranha ou com orelhas que se embrulhavam para dormir (referindo-se às figuras mitológicas do Hinduísmo). Em 1 d.C., a obra História Natural, de Plínio (o Moço), tornou-se uma referência dos Physiologus antigos: seu conteúdo descrevia minuciosamente cada uma das “raças” monstruosas (humanas e animais) já encontradas. Jacques Le Goff, historiador francês, esclarece que “a palavra physiologus, em grego, significa 'naturalista', portanto, os Physiologus eram obras de caráter enciclopédico e científico que reuniam um conjunto de saberes sobre os animais, vegetais e minerais. O fabuloso indiano foi alimentado por uma pseudo-ciência inspirada numa literatura apócrifa que a credulidade medieval acreditava sem dúvida nem exame.” Narrativas fantásticas de seres inusitados e monstruosos foram encontradas também no famoso mapa-múndi de Hereford, da virada do século 13 para 14. Nele, a Índia e a Etiópia eram representadas por homens sem boca ou sem cabeça, com longas orelhas, além de registros de seres como sátiros, faunos e unicórnios. Outra publicação na qual tem-se a descrição de “raças” monstruosas está em Romance de Alexandre. Membro da corte de Alexandre, o historiador Calístenes narrou as conquistas do rei da Macedônia; algumas cópias representavam soldados de Alexandre com gigantes com o rosto no peito, ciclopes ou homens com seis braços. Também na Basílica de Vézelay, na França, esculpida no século 12, na cena de Cristo e seus apóstolos estão presentes dois homens com cabeça de cachorro. "De perfecta constitutione hominis in utero liber unus", de Fortunio Liceti - Padua, 1616 Os monstros eram usados com freqüência pelos pregadores e conselheiros medievais, que valiam-se muitas vezes de homens deformados para pregar virtudes e anunciar punições. A intenção era metaforizar as características humanas: o orgulho e o poder era representado por gigantes, os pigmeus simbolizavam a humildade, os homens com cabeça de cachorro eram alegorias da discórdia. Monges e doutores da Igreja procuravam desenvolver a fé (sobretudo quando ameaçada pela expansão muçulmana) procurando adaptar todas as ideias aos ensinamentos bíblicos. Michel Zink, professor do Collège de France, comenta que os religiosos recolhiam elementos espantosos por curiosidade científica, que serviam para interpretar as manifestações, definindo-as como divinas ou diabólicas. “Eles se detinham bastante em demônios íncubos e súcubos, lobisomens, objetos ou personagens encantados. Essa tradição alimentou a nascente literatura produzida em idiomas falados localmente.” Imaginárias, interiores, e não exteriores, as viagens realizadas durante este período eram encaradas como uma forma de perdão dos pecados do viajantes, que acreditavam conhecer os lugares para onde se dirigiam, mas chegavam a lugares cuja existência jamais haviam imaginado. Viajar era uma experiência marcada pela maravilha (a figura central da resposta dos europeus ao Novo Mundo); era vivenciar – emocional e intelectualmente – a presença da diferença radical. "De perfecta constitutione hominis in utero liber unus", de Fortunio Liceti - Padua, 1616
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