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História | ||
Camões com dendê Se as vozes dos quatro milhões de africanos trazidos para o Brasil ao longo de mais de três séculos não fossem abafadas na nossa História, hoje saberíamos que eles, apesar de escravizados, não ficaram mudos. Participaram da configuração do português brasileiro e são responsáveis pelas diferenças que afastaram o português do Brasil do de Portugal. Aquelas vozes são perceptíveis na pronúncia rica em vogais da nossa fala (ri.ti.mo, a.di.vo.ga.do), na nossa sintaxe – tendência a não marcar o plural do substantivo (os menino, as casa),na dupla negação (não quero não), no emprego preferencial da próclise (eu lhe disse, me dê) –, e se revelam de modo inequívoco nas centenas de palavras que enriquecem o patrimônio linguístico do português do Brasil. São palavras portadoras de elementos culturais compartilhados por toda a sociedade brasileira, no âmbito da recreação (samba, capoeira), dos instrumentos musicais (berimbau, cuíca, agogô), da culinária (mocotó, moqueca), da religiosidade (candomblé, umbanda), das poéticas orais (os tutus dos acalantos, o tindolelê das cantigas de roda), das doenças (caxumba), da flora (dendê, maxixe, jiló), da fauna (camundongo, minhoca), dos usos e costumes (cochilo, muamba), dos ornamentos (miçanga, balangandã), das vestes (tanga, sunga), da habitação (cafofo, moquiço), da família (caçula, babá), do corpo humano (bunda, corcunda, banguela, capenga), das relações pessoais de carinho (xodó, dengo, cafuné), dos insultos (sacana, lelé), do mando (bamba, capanga), do comércio (quitanda, muamba, maracutaia). Nesse vocabulário, há os aportes antigos, na sua maioria de línguas angolanas, que entraramno idioma naépoca colonial e já estão integrados ao seu sistema linguístico, com seus derivados (esmolambado de molambo, sambista de samba, encalombado de calombo, maconheiro de maconha). Na mesma categoria encontram-se os termos associados à escravidão (senzala, quilombo, mocambo), alguns já obsoletos (banzo, mucama) e poucos também correntes em Portugal (moleque, carimbo), em meio a centenas de outros para designar elementos novos então introduzidos no trato diário com os escravos domésticos – “os escravos de jó (do quicongo njo, casa) que jogavamcaxangá ( jogo de tabuleiro)” da conhecida brincadeira infantil brasileira. O desempenho damulher negra, ama de leite e criadeira, foi tão marcante no seio da casa senhorial que até hoje chamamos o filho mais jovem pelo termo angolano caçula em lugar de “benjamin”, como se diz em Portugal. Foi ainda nesse momento que outros termos angolanos deixaram fora de uso no Brasil os seus equivalentes em português (moringa em lugar de bilha, corcunda por giba, capenga por coxo, cachaça por aguardente, cochilar por dormitar, xingar por insultar, molambo por trapo, marimbondo por vespa, dengo por mimo, caxumba por trasorelho). Mas ondeficou a memória dessas vozes, uma vez que nenhuma língua africana é mais falada como idioma pleno no Brasil? Nos falares de comunidades negras rurais, com um vocabulário reduzido de base umbundo, como as que vivem no Cafundó, São Paulo, em Tabatinga, Minas Gerais, ou as que dizem falar a “língua de banguela” no cântico dos vissungos, tambémemMinas Gerais, e na linguagem litúrgica dos terreiros onde elas ressoam como fator de identidade sociorreligiosa do grupo, seja ele de tradição mina-jeje dos voduns daomeanos, nagô-queto dos orixás iorubanos ou congo-angola dos inquices bantos.Esse repertório litúrgico, transmitido por tradição oral e que faz parte do falar cotidiano da gente de terreiro, foi popularizado através da mídia por compositores da MPB, de blocos afros e afoxés, de sambas-enredo, e pelas telenovelas. Esses terreiros têm atraído, além de pesquisadores e intelectuais de fama internacional, compositores brasileiros que terminaram por tornar conhecidos no país os orixás Iemanjá, Xangô, Oxum, Oxóssi, Ogum, Iansã, Oxalá, bem como termos tirados do contexto sagrado e que têm o seu sentido estendido. Apalavra axé,ofundamento sagrado desses terreiros, foi popularizada como saudação de boa sorte, amém, e também denomina um estilo de música criado na Bahia na década de 1980, a axé-music, com milhares de axezeiros, seus admiradores. Calcula-se que, dos quatro milhões de africanos trazidos para o Brasil, a maioria falava quimbundo e quicongo, ese distribui por todo o território brasileiro. A essa gente juntaram-se, em número menor, mas igualmente importantes, os de fala umbunda, dirigidos em grande parte para os garimpos de Minas Gerais. A mais antigagramática do quimbundo, A arte da língua de Angola, publicada em Lisboa em 1697, foi escrita na Bahia pelo missionário Pedro Dias para uso dos jesuítas, a fim de facilitar a doutrinação dos 25.000 negros. Segundo o padre Antônio Vieira, os africanos se encontravam em Salvador sem falar português, mas acredita-se que eles não tinham necessariamente o quimbundo como língua materna, pois, embora embarcados em Luanda, poderiam ser provenientes de outras regiões da atual Angola. Situação semelhante deve ter ocorrido em Palmares, onde se teria desenvolvido um falar de base quimbundo-quicongo, como se deduz dos títulos de seus líderes – Ganga Zumba, Zumbi, Dandara – e dos seus aldeamentos – Osengo, Macaco, Andalaquituxe. Ainda no século XVII,o poeta Gregório de Matos satirizava o que chamava de “mestres do cachimbo”, liderando cerimônias de “calundus e feitiço em quilombos superlativos”. Poderiam ser eles os chamados “pretos-velhos”,os báculos de Angola, que teriam, no Brasil, um modo de falar marcado pelo prefixo quimbundo zi- (ziterrero, zimenino, ziquizila). São muito populares nos candomblés de caboclo, nos quais os caboclos, denominação para os índios brasileiros, são reverenciados como os donos da terra – fato que nos leva a admitir que essas são as mais antigas manifestações de religiosidade afro-brasileira, resultado do encontro e da aceitação de crenças ameríndias do tronco tupi e africanas de matriz banto com o cristianismo. Outra evidência desse antigo contato entre índios e africanos está no dialeto caipira falado no interior de São Paulo e tido como de base quimbundo-tupi. Nesse processo de interpenetrações culturais e linguísticas, apesar da presença dos evés-fons (ou ewe-fons), cuja língua foi registrada entre os escravos de Vila Rica no século XVIII, e a mais recente influência dos iorubás no campo religioso, as vozes do negro banto ressoaram sobre todas as outras na construção da língua portuguesa do Brasil. Qualquer falante de uma língua tende a transferir para uma segunda língua hábitos linguísticos de seu primeiro idioma, e no Brasil isso não foi exceção. Por um lado, no confronto do português com as línguas bantas, em vez de surgir um conflito por falta de inteligibilidade entre seus utentes, ocorreu um movimento de africanização do português; por outro, a imantação pelo português das línguas negro-africanas, em razão das semelhanças estruturais entre o português antigo e as línguas bantas que aqui foram as mais faladas. Entre essas semelhanças estão o sistema de sete vogais orais (a é ê i ô ó u) e uma estrutura silábica na qual toda consoante é seguida de uma vogal, provocando o surgimento de uma nova sílaba (ri.ti.mo em lugar de rit.mo). Logo, não há sílaba fechada por consoante (falá por falar, Brasiu por Brasil), fazendo com que se conservasse o centro vocálico de cada sílaba, mesmo átona, o que ocasionou a continuidade da base vocálica do português antigo na modalidade brasileira, afastando-a do português de Portugal, de pronúncia muito consonantal. O português europeu atual tende a pronunciar apenas a vogal central (mnin em vez deme.ni.no), criando grupos consonantais impronunciáveis por um brasileiro. Diante dessa proximidade relativa, e provavelmente de outras ainda encobertas por falta de pesquisas, será possível explicar, de maneira convincente, a importância dos africanos no afastamento do português do Brasil do de Portugal, bem como a ausência de idiomas africanos no país. Yeda Pessoa de Castroé pesquisadora do Núcleo de Estudos Africanos e Afro-brasileiros em Línguas e Culturas da Universidade do Estado da Bahia e autora de Falares africanos na Bahia (ABL/Topbooks, 2001).
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