História Presos ao mar A bordo da nau Príncipe Real, chegaram ao Rio de Janeiro, em 1808, a rainha D. Maria, o príncipe D. João e seu filho D. Pedro. Essa história todo mundo conhece, e também o desfecho: treze anos depois, D. João VI retorna a Portugal, mas deixa o filho, responsável pela Independência, em 1822. Menos conhecido é o destino daquele navio. Ao contrário de seus ilustres passageiros, a embarcação teve um fim nada nobre: foi transformado num depósito de prisioneiros conhecido como “Presiganga”. LEIA ESTE ARTIGO EM FORMATO PDF Durante mais de três décadas, a Príncipe Real prestara relevantes serviços ao reino lusitano. Lançada à água em 1771, desempenhou o papel de nau capitânia (navio que lidera a frota) em missões da Armada portuguesa: expedições guarda-costas, comboios e outros auxílios navais. Primeiramente chamada de Nossa Senhora da Conceição, ganhou reparos e melhorias em 1795, sendo então rebatizada em homenagem ao príncipe D. João. Mas a epopeia de transportar a família real para os trópicos seria sua última viagem oficial. Assim que ancorou na nova capital do Império, foi aposentada de suas funções de navegação. Permaneceu ancorada no fundo da Baía de Guanabara, próximo à Ilha das Cobras, por mais de duas décadas, entre 1808 e 1831. Não que faltasse trabalho à Marinha, pelo contrário: em tempos de emancipação política, a Armada era requisitada em diferentes frentes – a guerra da Banda Oriental (1816-1820), o cerco às províncias resistentes à independência (1822-1823), a guerra da Cisplatina (1825-1828). Para alimentar as várias frentes de batalha, foram adotadas medidas drásticas de alistamento. Marinheiros mercantes e acusados por vadiagem eram recolhidos e obrigados a prestar serviços militares. Outro efeito colateral dos combates eram os prisioneiros de guerra. Para essas novas situações, a ex-nau capitânia entrou em cena. Agora como prisão. Como navio-presídio, ela recebia tanto os recrutados à força quanto os prisioneiros de guerra de baixa graduação. Para lá também iam criminosos condenados pela Justiça comum e pela militar. Sentenciados a penas variadas (até perpétuas), os chamados galés – condenados a trabalhos forçados – eram utilizados como mão de obra em serviços navais nas oficinas em terra firme, no dique em construção na Ilha das Cobras e nos navios em reparos. Pode parecer estranho que um navio português, depois de desempenhar papel principal em diversas comissões navais, tenha sido utilizado no Brasil como depósito de pessoas socialmente indesejáveis. Mas havia precedentes. Desde 1803, a nau Belém servia de prisão, em Lisboa, para degredados que seriam enviados a possessões portuguesas no ultramar. Uma das vantagens da Príncipe Real para também cumprir esta função era seu grande porte. Podia receber até 950 pessoas, o que permitia a custódia de um número expressivo de homens em local fechado e cercado de água por todos os lados. E nem adianta imaginar motins a bordo, com os presos tomando posse do arsenal de pólvora e projéteis do navio. Por ser uma embarcação desarmada, a nau Príncipe Real não possuía munição de guerra nem o equipamento necessário para um desempenho militar. Havia apenas uma despensa para mantimentos, repleta de carne de segunda, farinha de mandioca não refinada, bolacha estragada e feijão vencido – com proteína e ferro suficientes para que os presos suportassem o trabalho de sol a sol.
Mas o grosso do pessoal compunha a tropa, dedicada à guarda dos presos, escolta e sentinela dos trabalhadores forçados. Entre 1823 e 1830, o total de praças da tropa variou entre 160 e 241 homens – um número razoável, considerando-se que respondiam pela vigilância de mais de 500 encarcerados. A maioria dos detentos eram galés. Em 1827, foram contabilizados 399 deles na presiganga. No mesmo ano, encontravam-se no navio 107 prisioneiros de guerra de baixa graduação e 36 escravos de proprietários particulares, detidos ali “para correção” – em geral, por fugas. Todos recebiam o mesmo tipo de comida e de traje e deviam cumprir horários rígidos – a intenção era que fossem úteis à Marinha. A rotina dos detentos era a mais dura e sofrida que se possa imaginar. Em certo sentido, a presiganga tinha parentesco com os navios negreiros: a maioria dos galés tinha pele escura – eram os denominados pretos, pardos, crioulos ou mulatos pelas autoridades navais. Permaneciam acorrentados, eram submetidos a trabalho forçado e ficavam acomodados no depósito como se fossem escravos na travessia do Atlântico. Também era comum a aplicação de castigos corporais, ora com ferros (argolas ligadas por corrente ou varão de ferro, aplicadas nos tornozelos), ora com a golilha (duas tábuas unidas, com abertura para o pescoço), que obrigava o preso a se manter em posição vertical por algumas horas, ou mesmo suspenso, tocando o solo com as pontas dos pés, ou a chibatadas. Castigos que eram aplicados por decisão do comandante quando ocorriam faltas leves, para evitar a morosidade dos julgamentos do Conselho de Guerra. Essa violência, a bem da verdade, fazia parte da rotina da própria Marinha. Não é de estranhar a necessidade de recrutamento forçado e o alto índice de deserções dos soldados e marinheiros, diante do severo regime disciplinar imposto. Para estimular os sucessivos esforços de guerra, o imperador em pessoa se engajava em campanha pela adesão voluntária ao serviço militar, angariando mão de obra para as embarcações. E foi com esse intuito que D. Pedro I voltou a pisar no navio que o trouxera ao Brasil ainda criança. Visitou a presiganga em 15 de novembro de 1826, tentando convencer um grupo de dez espanhóis, presos pela polícia, a aderir à causa do Império no front da Cisplatina, onde se disputavam as fronteiras do atual Uruguai. Passada a época das guerras, a Marinha não precisava mais manter prisioneiros. A presiganga já era um navio antigo e, sobretudo, um modelo de punição antigo, associado a abusos e arbitrariedades. Em 1829, o texto anônimo “Dissertação abreviada sobre a horrível masmorra chamada presiganga existente no Rio de Janeiro” circulou pela Corte, questionando duramente esse tipo de prisão. Dois anos depois, o navio foi desativado. Não deixou saudades. Paloma Siqueira Fonseca é mestre em História com a dissertação “A presiganga real (1808-1831): punições da Marinha, exclusão e distinção social” (UnB, 2003). Saiba Mais - Bibliografia: COATES, Timothy. Degredados e órfãs: colonização dirigida pela coroa no império português, 1550-1755. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. GREENHALGH, Juvenal. Presigangas e calabouços: prisões da Marinha no século XIX. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação da Marinha, 1998. NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001. SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas: Unicamp, 2001. À moda romana A presiganga guardava parentesco com outros tipos de embarcação que serviram como depósito de pessoas. Quarenta das chamadas galères, navios próprios para a navegação no Mediterrâneo, abrigaram cerca de 10 mil trabalhadores forçados no porto de Marselha durante o reinado de Luís XIV (1643-1715). Na Inglaterra, 44 hulks, velhos navios mercantes abandonados, mantiveram, cada um, de 200 a 500 condenados a trabalhos forçados entre 1778 e 1857. As galeras francesas e os hulks ingleses tinham muitas semelhanças com a presiganga: estavam vinculados a uma administração central e tinham ligações com os arsenais de Marinha, onde eram realizados diversos serviços navais de doca. Em comum, também, o fato de todos remeterem à antiga prática da galé romana, na qual os presos eram aproveitados em algum empreendimento naval, sem qualquer preocupação em reabilitá-los para o convívio social.
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