Início > Artigo > Planisfério de Cantino: Um mapa para o mundo (quase) inteiro



Planisfério de Cantino: Um mapa para o mundo (quase) inteiro


É um monumento precioso do património cartográfico mundial. O planisfério de Cantino (1502) contém informação única sobre as viagens de exploração do final do século XV e início do século XVI. É também muito valioso na época em foi construído: pelo seu tamanho, beleza artística, riqueza da decoração e por conter informação actualizada e estratégica sobre um mundo que era descoberto dia a dia.

O planisfério português, anónimo, conhecido por  Cantino , datado de 1502 - hoje, propriedade da biblioteca estense de Modena, em Itália - constitui um documento de particular importância para o estudo da primeira fase da Expansão Marítima, na medida em que reflecte o conhecimento geográfico português, num dos seus momentos mais decisivos, pouco tempo depois das viagens de Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral e João da Nova - esta última já muito próxima do final da obra, não sendo claro que para ela tenha concorrido com qualquer novidade. O mapa tem, para além do mais, uma história curiosa que o permitiu datar com rigor e seguir os seus primeiros passos, compreendendo as circunstâncias em que foi feito. Um embaixador do Duque de Ferrara, Hércules d'Este, chamado Alberto Cantino, passou por Lisboa nos primeiros anos do século XVI, e terá conseguido comprar os favores de um (ou mais do que um) mestre cartógrafo que lhe fez uma copia do padrão real existente na Casa da Índia, com as mais recentes descobertas geográficas portuguesas. Quis a fortuna que se guarde a correspondência trocada entre o duque e o seu embaixador, revelando-nos que o trabalho foi pago pela exorbitante quantia de 12 ducados de oiro, sabendo-se ainda que a 19 de Novembro de 1502 viajava a caminho do seu destino, passando por Roma, de onde o próprio Cantino escrevia ao duque a dar-lhe notícias da preciosa compra, que deve ter saído de Lisboa algumas semanas antes desta carta.

O mapa está traçado sobre várias folhas de pergaminho, coladas lado a lado, sobre uma tela, medindo 1,050mm x 2,200mm, e representando todo o mundo conhecido, profusamente iluminado com símbolos heráldicos e outros sinais representativos, que foram desenhados em fases diferentes da sua elaboração, numa sequência que merecia um estudo aprofundado ainda por fazer. Dois sistemas de rosas dos ventos, tangentes do centro da carta, formam uma teia de linhas de rumo cujo traçado é posterior ao desenho das terras, das ilhas e mesmo da inscrição da maioria dos topónimos, como se comprova do facto de estarem interrompidas nesses mesmos locais. Possui seis troncos de léguas, e, pela primeira vez (que se saiba) tem desenhados o Equador, os dois Trópicos e o Círculo Polar Ártico, o que torna implícita a existência de uma escala de latitudes, com um valor aproximado de 17,5 léguas por grau. Pode ainda ver-se a linha divisória resultante do Tratado de Tordesilhas, sobre a qual está a seguinte inscrição:  Este he o marco dantre castella e portuguall . Com base na implícita escala de latitudes, constataram Duarte Leite e Gago Coutinho que apenas estão representados 257º de longitude, dos 360º que eram devidos a todo o orbe.

Para uma sucinta, mas tão sistemática quanto possível análise do mapa, vamos dividi-lo em quatro zonas distintas: a região ocidental, que corresponde à actual América; a África com a Península Industânica, que já fora visitada pelos portugueses; a Europa com o Mediterrâneo; e o Oriente onde ainda não tinham chegado navios europeus.

A parte ocidental está cortada pela linha de Tordesilhas, com as ilhas descobertas pelas viagens espanholas e a zona continental por eles explorada no final do século XV, representada tal como está no mapa de Juan de la Cosa, datado de 1500. Continuando para leste e sul a linha de costa  descoberta per mãdado del Rey de caltella , encontramos os contornos do Brasil, numa extensão bastante considerável. Não podemos ter certezas sobre a origem exacta das informações geográficas que deram origem a esse traçado, mas é lícito conjecturar que poderão ter vindo do próprio Pedro Álvares Cabral, em 1500, ou de Gaspar de Lemos, o comandante do navio que foi enviado a Lisboa com as notícias do  achamento do Brasil e que percorreu uma parte da costa antes de regressar ao reino. Uma terceira hipótese, menos verosímil, aponta para uma eventual viagem de André Gonçalves, enviado por D. Manuel logo que recebeu as notícias de Cabral. Essa viagem é referida por Gaspar Correia, mas o facto de estar omissa nos outros cronistas e não haver documentação complementar que a comprove, levou a que fosse posta em dúvida. É possível, ainda, que João da Nova, tendo saído de Lisboa em 1501 e chegado a 11 (ou 13) de Setembro de 1502, possa ter fornecido algumas informações para o desenho do padrão real de onde terá sido copiado este mapa, e um argumento que tem sido usado a favor desta hipótese é a marcação da ilha de Ascensão, eventualmente descoberta por este navegador na viagem de ida para a Índia. Em boa verdade, pouco tempo teria o cartógrafo desde a chegada de João da Nova até o mapa ter embarcado para o seu destino, mas sempre se admitiu que a colocação de uma ilha, por pequena que é e por não alterar grandemente o desenho, não traria grande dificuldade. Faço notar, no entanto, que o que está no mapa não é a ilha de Ascensão. Nesse lugar, e apesar de ter esse mesmo nome, está lá um arquipélago de seis ilhas que não parece terem sido acrescentadas à pressa. O arquipélago (que é, naturalmente, um erro geográfico) não só foi desenhado antes da teia de linhas de rumo, como existem sinais evidentes de que a união de pergaminhos sobre a qual está situado foi descolada e voltada a colar (com um pequeno deslocamento), já depois do traçado. A representação de Ascensão não é um aditamento simples de última hora, e o que lá está mais parece ser o resultado de avistamentos difusos, anteriores à viagem de João da Nova, do que o resultado de um descoberta conhecida em Lisboa umas semanas antes de ter sido completado o mapa..

A África do  Cantino tem sido apontada como a mais surpreendente representação de um continente que só tinha sido contornado três vezes. É impressionante o rigor conseguido, atribuído à eficiência técnica dos navegadores portugueses daquele tempo. Essas navegações foram, de facto, magníficas, mas não creio que seja essa a razão porque o continente africano aparece representado com tanto rigor no  Cantino , levando a supor que assim estaria no perdido padrão da Casa da Índia, que servia de modelo a todas as cartas da época. Neste mapa de 1502 a distância em  graus grandes (graus de círculo máximo) que separa as ilhas afortunadas do Cabo Guardafui, corresponde à medida exacta dada por Ptolomeu na sua Geografia, e não é provável que os portugueses tenham esquecido uma informação deste calibre (ainda por cima referente a uma zona que era, por demais, conhecida no tempo de Ptolomeu) para irem à procura da sua própria África que descobririam em apenas três viagens marítimas. E por muito que queiramos elevar as viagens portuguesas de Quinhentos, compreenderemos que nunca eram feitas de forma linear, nem com a ajuda de referências, decorrendo em enormes travessias irregulares, de que sabemos hoje alguns pormenores e, sobretudo, as indefinições. O desenho da África do  Cantino (ou o desenho do padrão real) parte de um pressuposto fundamental: a sua largura ou distância entre as ilhas Canárias e o Cabo Guardafui é de 83º de longitude, como tinha dito Ptolomeu (distância entre as Ilhas Afortunadas e o Cabo Aromata). A partir deste dado, foi explorada e desenhada a costa Africana - primeiro ocidental e depois oriental - ajustando-se sucessivamente os contornos, para que pudessem ir unir-se aos extremos já conhecidos Quase todos os autores que abordaram este assunto referiram a destruição dos mitos ptolemaicos, na medida em que foram, de facto, eliminados os seculares erros que povoavam o conhecimento geográfico ocidental, mas não se lembraram que havia valores bem conhecidos do sábio alexandrino, sendo lógico que os portugueses os adoptassem. Um desses valores era a distância em graus do Cabo Aromata às Ilhas afortunadas. A África de 1502 deve-se, portanto, à conjugação de dois saberes: um clássico, que conhecia a diferença de longitude entre os dois extremos do continente; e outro de  experiência feito , assente nas navegações do século XV, que foi construindo os contornos do resto da costa até unir as duas partes conhecidas. O enquadramento da costa, de aí até à Índia fez-se, pois, com relativa facilidade, subsistindo o evidente desenho ptolemaico do Golfo Pérsico a confirmar a importância do geógrafo grego. Em tempos, alguns autores invocaram um conjunto de inscrições que se podem ver no interior do continente africano, para supor que D. João II imaginara o Preste João mais perto da costa ocidental do que realmente estava, e uma África muito mais estreita, que servira de base ao desenvolvimento de uma estratégia política. Sem contestar os pressupostos da estratégia política, creio que a visão da África sempre teve a largura que lhe deu Ptolomeu, aguardando apenas o fecho da linha de costa, com as navegações a sul.

O traçado dos contornos europeus corresponde ao que era tradicional naquele tempo, decorrendo da técnica cartográfica mediterrânica, com os seus centros principais nas Ilhas Baleares e na Itália (cada uma com as suas peculiaridades, mas com traços gerais semelhantes). É evidente a existência de uma repetição de imagens que vinha do século XIV, que os portugueses encaixaram no seu próprio conhecimento, verificando-se com facilidade onde estão os pontos de descontinuidade. Repare-se, por exemplo, como as dimensões do Mediterrâneo, no sentido leste-oeste, estão muito curtas em relação ao tamanho da África, criando um istmo de Suez com uma dimensão descomunal, que, de maneira nenhuma, pode ser explicada pela falta de conhecimento sobre um local que, durante séculos, tão batido fora por mercadores e peregrinos. Este erro permaneceu nas cartas portuguesas durante décadas e compreende-se muito facilmente porquê. Lembremo-nos que a África está desenhada com base numa  quasdrícula de  graus grandes (como se fossem graus de Equador), enquanto as representações do Mediterrâneo eram feitas com base num conhecimento de distâncias lineares (na realidade distancias e rumos, embora, para este efeito, apenas nos interesse considerar as distâncias). Um grau de longitude no Mediterrâneo (38º ou 39º de latitude) tem apenas 13,5 léguas. Ora quando se une uma carta graduada em distâncias, duma zona que se desenvolve longitudinalmente e em que o grau de longitude tem 13,5 léguas, com outra onde o grau tem 17,5 léguas, o desfasamento é inevitável, e as descontinuidades dos contornos do território só podem ser evitados com artifícios de que resultam tão absurdos como o enorme istmo de Suez. Esta explicação dá-a Pedro Nunes 35 anos mais tarde, e referindo-se às cartas do seu tempo, onde ainda subsistia este erro.

Finalmente, resta-me falar da Ásia, e, sobretudo, da Ásia para leste do Cabo Comorim onde nunca tinham estado os portugueses. A parte do  Cantino que representa essa região surge-nos tosca e desajustada das linhas de referência gerais do mapa (Equador e Trópicos). É fácil compreender como a informação dessas paragens resulta de uma fonte oriental cuja linguagem técnica ainda não era entendida pelos portugueses. O mapa tem assinalados locais com valores de alturas estelares em isba (unidade oriental) , mas, com frequência, mal colocados, mesmo que fosse feita uma conversão directa para graus. Na verdade a navegação oriental é complexa e não foi compreendida pelos portugueses logo aos primeiros contactos e é provável que esta representação tosca tenha a ver com isso. A impressão que salta à vista numa observação rápida desta parte oriental do mapa é a de que ali foi acrescentada uma outra carta, cuja escala era diferente e que em nada se ajustava à representação que estava feita. Sem perceber nada de correspondência de unidades ou sem saber o significado dessas alturas estelares em isba, nunca seria possível conciliar as duas técnicas, podendo ser essa uma das razões da discrepância existente. Luís Albuquerque estudou minuciosamente esta parte do mapa, lendo todas as legendas e comparando os valores. Pareceu-lhe que não terá havido mais do que vagas informações das quais saiu aquele desenho difuso e cheio de absurdos geográficos, onde algumas alturas estão certas mas outras estão muito desajustadas. Não pode negar-se no entanto que se conseguem identificar os acidentes geográficos mais importantes, completando o conjunto da carta com uma área que, para os portugueses ainda iria entrar em exploração

Luís Jorge Semedo de Matos

fonte


 



Data: 2019-07-01

 Vídeo

Sobrevoando a Restinga e a cidade do Lobito (Angola)

 XIII Congresso da APLOP | Ireneu Camacho | ENAPOR – Portos de Cabo Verde

 XIII Congresso da APLOP | Eneida Gomes | ENAPOR – Portos de Cabo Verde

 XIII Congresso da APLOP | Joaquim Gonçalves | APDL

 XIII Congresso da APLOP | Ricardo Roque | A Marca APLOP – Novos Caminhos

 XIII Congresso da APLOP | António Santos | Estudo de Mercado dos Portos dos PALOP

 XIII Congresso da APLOP | Dinis Manuel Alves

 XIII Congresso da APLOP | Segundo período de debate

 XIII Congresso da APLOP | Debate

 XIII Congresso da APLOP | Apresentação do Painel 1

 Encerramento do XIII Congresso da APLOP

 XIII Congresso da APLOP | José Renato Ribas Fialho | ANTAQ

 XIII Congresso da APLOP | Cerimónia de Abertura | Ireneu Camacho

 XIII Congresso da APLOP | José Luís Cacho

 XIII Congresso da APLOP | Massoxi Bernardo | Porto de Luanda

 XIII Congresso da APLOP | Francisco Martins | Porto de Suape

 XIII Congresso da APLOP | Cerimónia de Abertura | Murillo Barbosa

 Constituição da APLOP

Constituição da APLOP

Foto de família