VIAJANDO PELA HISTÓRIA
O Medo do Mar
O Homem da Idade Média é preferentemente terrestre.
Apesar do grande número de recortes de terra e da elevada quantidade de pescadores e navegantes, a grande maioria da população europeia tem medo da água e, particularmente, da sua extensão ou seja do Mar Oceano.
Quando se desenvolveram os centros urbanos, os mercadores depressa descortinaram que o transporte mais seguro, mais rápido e com menos custos para mercadorias por grosso, era o transporte por via marítima ou fluvial.
Contudo, pescadores e marinheiros faziam normalmente vida à parte, formando comunidades distintas dos camponeses, e, só muito lentamente, os seus conhecimentos começaram a tornar-se património comum da cultura habitual.
Para o homem europeu, o oceano era um lugar perturbador, onde o reino da água excluía a vida humana. O homem podia percorrer os rios, navegar nos mares interiores, mas quando as águas se estendiam a perder de vista, até distâncias completamente desconhecidas, como o caso do oceano Atlântico, então o mar transformava-se no reino de todos os monstros:
“Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que deciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Áquilo queriam
Arruinar a máquina do Mundo!
A noite negra e feia se alumia
Cós raios em que o Pólo todo ardia!”
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto VI, estr. 77
Segundo Gaius Plinius (23-79), naturalista romano, autor da Naturalis Historia, a vida animal, no mar, não estava sujeita à ordem, mas à confusão e ao caos. A água era, entre os quatro elementos da natureza, o que tem a virtude de trazer a fecundidade à terra e, no baptismo, de lavar o homem do pecado. Torna-se, porém, quando acumulada em quantidade excessiva, numa grande massa amarga, com uma superfície lisa, ou encrespada por tempestades que levantam ondas como montanhas, mudando de cor conforme os ventos, como diz o mesmo autor e o secunda Camões. Por tudo isto, o oceano é o lugar onde o homem não pode subsistir. A tudo isto acrescenta-se a conotação negativa dada ao lugar onde o Sol se põe, associado que fica ao reino da morte, por oposição ao lugar onde ele nasce, local onde a começa a vida.
Desta feita, navegar em direcção contrária à terra, era, pois, como tentar viajar para lá da morte. E a esta concepção que explica o enorme horror à navegação para Ocidente. Na verdade, navegar ao longo da costa para Sul era uma grande aventura, pois o pensamento do homem focalizava o princípio de que aí o calor era tão grande que o mar fervia como uma marmita posta ao lume.
Por outro lado, tomar a rota do Ocidente, seria arriscar-se a penetrar no reino dos mortos e ir aí encontrar as ilhas onde eles sofriam o castigo eterno, pelos males que haviam cometido no mundo dos vivos, ou serem recompensados pelo bem que tinham praticado em vida. Como exemplo refira-se que Cristóvão Colombo, já no final do século XV, foi necessário sentir-se pessoalmente inspirado por Deus, para empreender tão grande viagem.
No século XV, as navegações portuguesas ao longo da costa africana respeitavam as concepções medievais acerca do mar e do mundo. Tais ideias deviam estar difundidas entre indivíduos de cultura média, formados nas escolas onde predominava a cultura clerical. Contudo, não se sabe se seriam partilhadas por gente habituada ao mar, que fazia da pesca ou do comércio marítimo, o seu modo de vida. A aventura aqui teria como base a indiferença.
Na verdade, verificou-se, através de várias obras, anteriores ao século XIII, que os povos mais em contacto com o mar reflectem conhecimentos mais exactos e menos preconceituosos acerca da terra firme e das ilhas do oceano, de que os mestres responsáveis pelo ensino vulgar da geografia e da cartografia.
Dada a grande extensão do litoral na época medieval, os contactos da gente das áreas costeiras com o Atlântico são consideráveis. Muitos extraem do mar os alimentos fundamentais da sua subsistência como o sal e o peixe, ou, por outro lado, tiram proveito dos conhecimentos da navegação para a prática do comércio.
Saliente-se, porém, igualmente, a violência praticada pelos povos da Normandia que atacaram as costas marítimas portuguesas nos séculos X e XI. Vieram nos seus barcos, imortalizados por odes à árvore, pela comparação, metáfora e alegoria. Em alguns poemas da Edda Poética, do século XIII: no Lokasenna, estrofe 42, parece ser uma floresta que separava o mundo dos deuses do dos gigantes. No início do Volundarkiòa, é o bosque sobrevoado pelas mulheres-cisne.
Noutros, trata-se de uma floresta atravessada por dois guerreiros a caminho da batalha, ou é um mensageiro que tem de atravessar o bosque negro. Surge, porém, igualmente como um dos territórios oferecidos a Gunnar. Por outro lado, um Kenningar é uma perífrase característica da poesia skáldica. Há poetas que utilizam referências como: governador/senhor da floresta (a árvore); as algas da encosta da colina, ou seja a floresta; o carvalho do anel do engano, isto é, o navio; o carvalho das ondas, de novo, o navio; e, ainda, com este significado, a longa árvore do mar e a terrível árvore fria da onda, o barco (Hélio Pires).
Ainda pelos piratas sarracenos, nos séculos XI a XIV, que se transformaram em obstáculos ao desenvolvimento destas actividades, nas que contam no Alcorão com metáforas idênticas.
No século XIII, verifica-se o repovoamento intensivo do litoral e a intensificação da pesca, resultante da diminuição da pirataria muçulmana, depois da destruição dos seus portos de abrigo no Algarve, com a conquista portuguesa, terminada em 1249. Nas últimas décadas do século XIII, houve, na costa próxima de Lisboa, intensos combates marítimos1.
Segundo historiadores árabes, os ataques dos barcos almóadas que destruíam os barcos portugueses e assolavam as costas, foram intensamente combatidos pela frota nacional. Depois da tomada de Faro, os ataques dos piratas sarracenos não terminaram. Existem numerosas menções dos seus roubos e destruições nas aldeias próximas da costa e da fronteira com Castela:
“Destarte Afonso, súbito mostrado
Na gente dá, que passa bem segura,
Fere, mata, derriba, denodado;
Foge o Rei Mouro, e só da vida cura.
Dum Pânico terror todo assombrado,
Só de segui-lo o exército procura,
Sendo estes que fizeram tanto abalo
No mais que só sessenta de cavalo”
Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto III, estr. 67
Se a pesca implicava hábitos de navegação costeira, o comércio marítimo com regiões distantes obrigava a ter barcos maiores, e mais bem apetrechados e conhecimento de melhores técnicas de navegação. O desejo do lucro foi, como é óbvio, o grande impulsionador. No século XIV, usavam-se principalmente a nau e a galé. Ambas serviam o comércio e a guerra, se bem que a primeira conviesse mais a fins mercantes e a segunda a objectivos bélicos. Muitos outros tipos de embarcações sulcavam os rios e os mares portugueses, nessa mesma centúria. Eram quase todas de pequeno porte e apenas tinham capacidade para um pequeno número de tripulantes, dedicando-se, de preferência, à pesca e ao tráfico de cabotagem: o baixel, a barca, o batel, o bergantim, a caravela moura, a pinaça.
Com o novo século, a partir de 1401, surge a caravela menos pesada e, com o Infante D. Henrique, o modelo que vai traçar os oceanos, o navio, a barca, o barinel, a nau, a urca, as “galeotas, fustas e taforeiras”, como o refere a documentação de Quatrocentos,
Quanto a técnicas, a agulha de marear, a bússula, o portulano, o astrolábio, quadrante e sextante, o cronómetro, as tábuas solares, a vela latina, o relógio mecânico, o nocturlábio, a toleta de manteloio (uma tabela numérica) …
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Se a pesca implicava hábitos de navegação costeira, o comércio marítimo com regiões diversas e distantes obrigava a ter barcos maiores e mais bem apetrechados e conhecimento de melhores técnicas de navegação. O desejo do lucro foi, como é óbvio, o grande impulsionador.
Em 1203, o soberano inglês, João I, o Sem Terra (1199-1216) deu carta de segurança a todos os mercadores portugueses que exerciam as suas actividades no seu reino. Dois anos mais tarde, o mesmo rei garantia-lhes segurança maior.
Em 1266, o seu sucessor, Henrique III (1216-1272), concedeu mais de cem salvo-condutos a mercadores portugueses e, no ano anterior, tinha sido confiscado um navio português carregado de produtos de exportação com 30 marinheiros.
A atracção dos comerciantes pela Inglaterra resultava do lucro obtido com a importação de tecidos, de madeiras que vinham da Irlanda, sobretudos as maleáveis, a bordalha, que serviam para rematar os bordos dos barcos, e a pesca, onde iam regularmente desempenhar-se desta actividade, hoje tão inexplicavelmente abandonada. Era, então, fonte de abastecimento e descanso para prosseguir até ao Mar do Norte e no regresso. Em meados do século XIII, verifica-se a multiplicação de referências a comerciantes portugueses, no Atlântico Norte, em Bordéus e La Rochelle.
A partir de 1280, os mercadores constituem já um grupo suficientemente numeroso e organizado para formarem uma bolsa destinada a associar os que desenvolviam as suas actividades naqueles “Países”.
Na mesma época, surgiam graves conflitos com os Ingleses, devido ao facto de os seus mercadores sofrerem a pirataria portuguesa nas nossas costas. As represálias atingiam mercadores portugueses em Inglaterra e a questão suscitava a correspondência entre soberanos e uma longa negociação que permitiu restabelecer os contactos dois anos mais tarde.
O comércio com a Flandres, Inglaterra, França e com os portos castelhanos, aragoneses e “italianos” do Mediterrâneo desenvolveu-se sem cessar até ao fim do século XIV. Verificou-se que os navegadores portugueses se dirigiam preferentemente aos centros exportadores do Atlântico Norte e frequentavam menos os do Mar Mediterrâneo. Aqui os comerciantes catalães, pisanos, genoveses e venezianos dominavam o comércio marítimo, não conseguindo os Portugueses penetrar nesse mar fechado.
Não se sabe ao certo, desde quando é que o desejo de lucro incitou os marinheiros portugueses a se aventurarem mais para Sul, ao longo da Costa de África, por suspeitarem que poderiam aí encontrar vantagens e riquezas.
A primeira notícia do género foi referida pelo geógrafo árabe Muhammed al-Edrisi, de meados do século XII. Conta que oito aventureiros partiram de Lisboa e navegaram depois durante mais de um mês, no oceano em direcção ao sul. Tinham visitado uma ilha deserta e outra habitada, antes de regressarem por Safim, na costa africana, Se estes destemidos marinheiros, que certamente fizeram a viagem antes da conquista de Lisboa por D. Afonso Henriques em 1147, conseguiram regressar, o mesmo não aconteceu com os irmãos Ugolino e Vadino Vivaldi, genoveses que, com duas galeras, se aventuraram numa grande viagem. Depois de escalas em Maiorca e Ceuta, prosseguiu para Sul, para lá do Estreito de Gibraltar, até aproximadamente à latitude do Cabo marroquino de Rhir (Guer), um pouco a Norte de Agadir. A assinalar, há ainda, 50 anos depois, uma viagem promovida por Catalães: uma galé comandada por Jácome Ferré zarpou de Maiorca em 10 de Agosto de 1346, com destino ao Rio do Ouro, desconhecendo-se se chegou a ultrapassar o Estreito de Gibraltar.
Seguiram-se as Canárias com que abrimos este apontamento.
As prováveis dificuldades e principalmente a desorganização para problemas internos ou as guerras com Castela, durante os reinados de D. Pedro I e de D. Fernando e, por fim, as perturbações causadas pela revolução de 1383, retiraram aos mercadores portugueses, o apoio necessário para empreenderem expedições suficientemente importantes. Os factos parecem indicar que, até ao fim do século XIV, a coroa Portuguesa tinha interesse em explorar o Oceano ou mesmo a costa africana, mas não devia acontecer o mesmo com os armadores e comerciantes. Só depois do início do século XV, parece que acabaram por convencer-se das vantagens económicas que podiam tirar delas.
João Silva de Sousa
Data: 2019-07-03